Como o caos pode nos ajudar a encontrar o caminho?
Vivemos cercados por calendários, notificações e infinitas listas de tarefas, como se pudéssemos amarrar o tempo com as mãos. Fizemos da previsibilidade nossa principal aliada. Mas, entre um compromisso e outro, em um momento de descuido, algo escapa. Que seja uma palavra mal colocada, uma emoção que nos transborda ou algo que nos emudece. O caos se insinua onde menos esperamos – ou, ainda pior, onde menos desejamos – e talvez ele seja o verdadeiro maestro da nossa existência.
Recentemente, tive a oportunidade de ler o livro O Deus da Carnificina, de Yasmina Reza (2008), publicado no Brasil pela Editora Âyiné em 2021. Trata-se de um texto teatral, e a peça foi adaptada para o cinema pelo diretor Roman Polanski (2011), com participação da autora na escrita do roteiro. Resumidamente, a obra nos convida a acompanhar um encontro entre dois casais para discutir a briga entre seus filhos. Uma conversa inicialmente civilizada logo se transforma em um jogo de acusações e tensões. À medida que as máscaras caem, o controle dá lugar ao caos, expondo as fragilidades e os conflitos não resolvidos dos personagens. Reza explora, com ironia, como o comportamento humano, aparentemente civilizado, pode se desfazer diante do descontrole emocional, revelando as complexas dinâmicas das relações familiares.
Sendo essa uma leitura realizada já no ano de 2025, quase duas décadas após sua publicação, confesso que senti uma enorme curiosidade sobre como a obra seria, caso lançada em nossos dias atuais. Ou até mesmo como seria uma nova adaptação ao cinema, levando em consideração os novos contratos sociais, oriundos de nossa vivência submersa no virtual. Mas isso é papo para outra hora.
A situação que reúne os dois casais é, no mínimo, delicada: uma criança agrediu a outra com um taco de baseball, resultando na perda permanente de alguns dentes da frente. Um episódio de agressão séria que exige respostas difíceis. Os pais da criança agressora chegam à casa dos pais da criança agredida com uma postura inicial de abertura ao diálogo. Mas, diante de circunstâncias tão complexas, as perguntas inevitavelmente se acumulam: qual deve ser o papel dos pais nesse cenário? A criança que agrediu sente, de fato, arrependimento? Esse arrependimento é autêntico ou apenas uma tentativa de escapar das consequências? E mais: será que um simples pedido de desculpas seria suficiente para evitar que algo assim volte a acontecer? Não é difícil imaginar o desconforto e a tensão que permeiam esse encontro. Estar na posição de qualquer um desses pais é, sem dúvida, um desafio enorme.
Aqui, cabe lembrar da indiferenciação (em maior ou menor grau) que recai sobre a relação entre pais e filhos. Carl G. Jung, em seu livro O Desenvolvimento da Personalidade (originalmente publicado em 1954), nos explica como transtornos e questões comportamentais apresentadas pelas crianças podem ser um reflexo de conflitos que habitam a psique dos pais. No decorrer da narrativa, fica claro que o casal responsável pela criança agressora está enfrentando problemas sérios de comunicação entre si – e podemos supor que a agressividade apresentada pelo filho pode ser uma consequência de conflitos expostos ou velados entre os pais. O conceito de indiferenciação também é válido no sentido de que, para muitos pais, é difícil enxergar (ou aceitar) que seus filhos não são uma extensão de si mesmos, e sim pessoas dotadas de individualidade própria. Dessa forma, méritos e deméritos dos filhos comumente são associados diretamente à imagem dos pais, trazendo uma camada a mais de constrangimento para esse imbróglio.
Um ponto crucial a ser observado é que estamos diante de duas famílias francesas, aparentemente de classe média, moradoras de uma região privilegiada. Esse contexto, sem dúvida, molda a maneira como os papéis sociais são desempenhados, criando expectativas sobre como a situação deveria ser resolvida. Sob uma ótica psicodinâmica, o simples fato de desempenhar papéis sociais não é um problema em si. O verdadeiro erro dos pais foi a incapacidade de se voltarem para seus próprios sentimentos antes de se enfrentarem em uma discussão tão delicada. Sentimentos desconfortáveis, escondidos sob a fina camada da civilização, começam a se revelar da maneira mais inadequada possível. Em muitos momentos, o verdadeiro motivo do encontro (a briga entre os meninos) acaba sendo deixado em segundo plano. Por trás das personas polidas, aspirantes à perfeição, vemos um retrato muito mais cru daquilo que somos capazes de ser.
Há algo em nós que não suporta a perfeição. Um deslize, um esquecimento, uma explosão de raiva – pequenos gestos que escapam do nosso controle e parecem dizer: “Ei, você não é tão civilizado assim!”. O inconsciente não pede licença. Ele derruba portas e nos mostra que ainda carregamos o selvagem em nós. Quanto mais tentamos reprimir algo, mais intensa se torna a força com a qual isso se volta contra nós. Pelo desfecho tragicômico da obra, fica claro que ambos os casais estavam sentados sobre seus desconfortos há muito tempo. Conflitos pessoais e conjugais, há muito adiados, aguardavam o menor abalo para irromper com toda a intensidade.
E o que podemos aprender com essa obra? Do olhar junguiano, O Deus da Carnificina nos desafia a olhar para dentro, a nos abrir para aquilo que costumamos esconder, ignorar ou tentar controlar. A história nos mostra, de forma brutal e até irônica, que quando reprimimos nossos sentimentos, eles não desaparecem – ao contrário, acabam se voltando contra nós com força. A peça nos convida a reconhecer o caos interno que carregamos, aquele lado "B" da vida, tão frequentemente negligenciado, mas tão essencial para nosso crescimento.
Na clínica junguiana, a verdadeira transformação acontece quando aceitamos nossas sombras, aquelas partes de nós que evitamos. E, sim, o caos – tão temido e evitado – é uma parte fundamental dessa jornada. Ao abraçá-lo, ao invés de fugir dele, damos espaço para a integração de nossos conflitos internos. É no confronto com nossas fragilidades e desconfortos que encontramos o caminho para nos tornarmos mais inteiros, mais autênticos.
Sem romantizar a agressividade ou transformar isso em algo idealizado, essa história poderia, sem dúvida, ter sido contada por algum paciente meu. E, sabe, isso não seria o fim do mundo. Nem todas as situações são consertáveis, mas o que acontece aqui vai muito além do que parece à primeira vista. Esse conflito, esse encontro explosivo, poderia ter se tornado um ponto de conscientização. Um convite para olhar para os próprios sentimentos, para os desconfortos que guardamos dentro de nós e para as falhas que temos medo de admitir. O que realmente importa não é evitar o caos, mas saber como nos relacionar com ele, como ele pode nos ensinar algo profundo sobre quem somos e sobre o que realmente precisamos transformar em nossas vidas.
Essa obra nos convida, então, a refletir: até onde estamos dispostos a ir para nos conhecer em sua totalidade? Até que ponto aceitamos nossas imperfeições, os sentimentos contraditórios que habitam em nós, sem rejeitá-los ou mascará-los? O caos, muitas vezes visto como ameaça, pode ser, na verdade, um companheiro poderoso no caminho de autocompreensão. Ao aceitarmos a complexidade de nossos conflitos internos e ao integrarmos essas partes dispersas de nós mesmos, somos capazes de nos transformar de maneira profunda. É na aceitação do caos, no acolhimento das nossas sombras, que encontramos o potencial para uma vida mais inteira, mais autêntica e, paradoxalmente, mais serena.
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JUNG, Carl G. O desenvolvimento da personalidade. Trad. Raul G. Soares. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2003.
REZA, Yasmina. O deus da carnificina. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora Âyiné, 2021.
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Rebeca Moreira Nalia é especialista em Psicologia Junguiana e graduada
em Psicologia. Atua como psicóloga clínica, supervisora, professora e
mediadora de grupos de estudo voltados para a Psicologia Analítica. Faz
parte do Instituto PSIADI.
Contato: [email protected]
Instagram: @psico.beca