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Em busca de uma psicologia viva

Dependendo da forma como são utilizados, os conceitos da psicologia podem assumir um valor apotropaico, ou seja, mágico, usado para afastar aquilo que assusta, que causa medo. (...) Nesse sentido, é preciso cuidado: os conceitos podem ajudar a mapear o mundo, mas lidar com o desconhecido é uma característica importante da psicologia analítica.

“Só quem não entende as trevas teme a noite”
Carl Gustav Jung

 

Dependendo da forma como são utilizados, os conceitos da psicologia podem assumir um valor apotropaico, ou seja, mágico, usado para afastar aquilo que assusta, que causa medo. Assim, o psicólogo corre o risco de trocar a totalidade da experiência por um nome, um selo. Nesse sentido, é preciso cuidado: os conceitos podem ajudar a mapear o mundo, mas lidar com o desconhecido é uma característica importante da psicologia analítica (JUNG, 2011).

No Livro Vermelho, Jung (2015) tece alguns questionamentos em contato com a imagem de um eremita. Nessa passagem, o autor reflete sobre o risco de aprisionar a vida na sua racionalização, trocando a experiência pela própria definição. “Tu dizes a palavra mágica, e o ilimitado está preso no finito. Por isso as pessoas procuram e criam palavras.” (JUNG, 2015, p. 223-224)

A vivência de Jung com o eremita tem muito em comum com a busca de Sidarta no livro homônimo de Herman Hesse. Talvez o leitor não conheça esse livro, e, se for o caso, indico fortemente a leitura. Sidarta é a história de um homem que, em contato íntimo com a voz secreta de sua própria alma, conheceu muitas doutrinas, mas não se fixou a nenhuma. Essa mesma voz o impede de aceitar uma única verdade — ainda que venha do próprio Buda — e o leva sempre adiante, para a próxima experiência, num eterno devir (HESSE, 2003).

Nesse sentido, Jung e Hesse têm muito em comum. Ambos expressam, uma mesma desconfiança em relação às palavras, que limitariam o contato do indivíduo com a experiência direta.  Eles nos ensinam, cada qual a sua maneira, que toda definição esconde uma sombra, um oposto desconhecido que escapa ao texto.

“‘O oposto de cada verdade é igualmente verdade.’ Isso significa: Uma verdade só poderá ser comunicada e formulada por meio e palavras quando for unilateral. Ora, unilateral é tudo quanto possamos apanhar pelo pensamento e exprimir pela palavra. Tudo aquilo é apenas um lado das coisas, não passa de parte, carece de totalidade, está incompleto, não tem unidade.” (HESSE, 2003, P. 151)

“A psicologia, por ser a mais jovem das ciências, padece ainda do mal de uma mentalidade medieval em que não se fazia distinção entre as palavras e os fatos." (JUNG, 2011, p. 45).

Como deixar a verdade falar através das palavras? Penso que Jung tentou construir algumas aberturas. Seus textos escondem mistérios e raramente entregam definições fechadas das coisas da alma, pois é justamente ao serem definidas que elas perderiam algo de seu sentido mais íntimo.

Assim, Jung se cerca — e com razão — de uma série de cuidados para evitar que suas palavras se sobreponham aos fatos ou que suas ideias se tornem uma espécie de slogan, limitados ao zeitgeist, o espírito da época. Em Presente e Futuro, o autor (2013) amplia o tema dizendo que o indivíduo moderno estava de tal forma cercado de slogans e de ideias massificadas que se tornara incapaz de ouvir a si mesmo. Jung não queria que a psicologia seguisse o mesmo caminho e se tornasse ela mesma um slogan da massa.

Precisamos ter muito cuidado para não reduzir a psicologia junguiana a receitas prontas, caso contrário estaremos bem distantes dos passos do mestre. Jung considerava que a verdade mais importante era a verdade da experiência, a verdade da alma de seu paciente. Esta não deve ser sombreada pela teoria. Devemos partir do pressuposto que o caminho do outro é necessariamente desconhecido, pois diz respeito ao outro (JUNG, 2015).

Ao adentrar a sala da psicoterapia, devemos renunciar a todas as certezas e nos colocar a serviço de algo que é tão desconhecido que recebe o nome de inconsciente. Se quisermos aprisionar o inconsciente ou qualquer um de seus processos em receitas, ou slogans intelectuais, estaremos fadados à incompletude.

Em Sidarta, Hesse (2003) nos mostra que apenas o conhecimento pode ser transmitido, mas a sabedoria precisa ser encontrada individualmente, não podendo ser transmitida por outra pessoa. Foi este o motivo que levou a personagem a se afastar do séquito de Buda, buscando por um caminho próprio. Jung (2015) ensina algo semelhante, quando alerta sobre os riscos da imitação. Em O eu e o inconsciente o autor traça duros comentários acerca da situação psíquica do discípulo, que renuncia em favor do mestre a responsabilidade de pensar por si mesmo, assumindo de bom grado uma posição infantil. Ele se entrega comodamente aos passos do mestre, repetindo suas palavras, acreditando que neste ou naquele caminho encontrará algo seguro. 

Mas a alma não é isto ou aquilo (JUNG, 2014, p. 57).

Por isso, talvez o caminho mais junguiano possível seja não ser tão junguiano assim. Talvez o melhor que possamos fazer seja nos esforçar para aprender do mestre tudo aquilo que pudermos, mas cuidando para não colocar as teorias — ou o que entendemos delas — na frente da experiência direta com a nossa alma e a dos nossos pacientes. Devemos nos esforçar para aprender tudo o que pudermos sem deixar de ouvir a voz do nosso daimon pessoal, aquela parcela de nós que nos move em direção a nós mesmos.

Talvez, se encontrarmos os caminhos de nossa própria individuação, poderemos encontrar em nossa alma o mais sábio dos mestres. Que possamos explorar os nossos caminhos, sabendo que essa é a melhor maneira de nos colocar à disposição de nossos pacientes. Afinal, só é possível ouvir verdadeiramente alguém se primeiro soubermos ouvir a nós mesmos. 

De qualquer forma, Sidarta só conseguiu alcançar a meta quando se despiu de todas as doutrinas. Vestia apenas a si-mesmo. 


Referências:

HESSE, H. Sidarta. Sao Paulo: Círculo do Livro, 2003

JUNG, C. G. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis, Vozes, 2014

JUNG, C. G. O eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2015

JUNG, C. G. Presente e Futuro. Petrópolis, Vozes, 2013


Graduada em Arquietura pela USP (2018); Pós-Graduada em Psicologia Junguiana pela Uningá-PSIADI (2021) e Graduanda de Psicologia pela Universidade do Sagrado Coração desde 2019. Mediadora de grupos de estudo e organizadora dos cursos de extensão e de Pós-Graduação do Instituto PSIADI, que promove cursos voltados para a Psicologia Analítica e Diálogos Interdisciplinares.


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Instagram: @danielamiyahara.psi

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